"Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar, e o tal do mundo não se acabou", mais uma vez!
Então, para comemorar, ou simplesmente, para constatar que eu estava certo e nada aconteceria, nada absolutamente nada, nem um misero eclipse. Fica um conto escrito há uns meses atrás, para um concurso literário, que obviamente eu não ganhei!
Caso alguém ainda leia isso aqui, espero que valha a penas os minutinhos gasto na leitura! Enjoy:
Para contrariar,
aqui estamos
Feliz ano novo. Desejo a mim mesmo. Pela janela consigo
ver a cidade amanhecendo cinza. Na rua deserta, sem nenhum veículo, vejo apenas
uma embalagem metalizada dançando ao som do vento, sobre e sob o viaduto ao
lado não há qualquer resquício da civilização tão incivilizada. O cenário seria
perfeito para qualquer filme hollywoodiano de ficção cientifica, uma das
maiores metrópoles do mundo deserta após um ataque extraterrestre ou a extinção
do ser humano graças a uma pandemia fora de controle.
Não é nada disso. Tenho certeza que em algum lugar
perto daqui, em algum desses becos, jovens ainda meio bêbados e recém-chegados
à maioridade descobrem o perigo e o prazer do sexo, como eu fiz um dia. Em
algum lugar distante daqui, alguma daquelas famílias que um dia tive como
vizinhos ainda assam churrasco enquanto o rádio do carro toca uma banda
qualquer que eles insistem em chamar de música.
Em algum lugar muito longe daqui Ele deve estar dormindo, talvez entre
braços que não são mais os meus.
Um ano começa agora e eu o vejo surgir sem grandes
alardes, entre alguns dos livros que Ele deixou e uma garrafa de champanhe pela
metade, grande demais para uma única pessoa. Se teve fogos de artifício a meia
noite, não lembro. Com certeza teve e em algum momento eu devo ter levanto e
olhado as bombas de luzes que explodiam no céu, não me lembro disso pois na certa as zero hora
e um segundo meu pensamento devia estar do outro lado do atlântico. Eu devia estar pensando nele, como venho
fazendo há meses, todos os dias, desde que Ele me avisou com uma felicidade
visível que iria para a Europa. Ele partiu deixando pedaços, as suas marcas ficaram
espalhadas no Sul e aqui nesta cidade, neste apartamento, em mim.
Desde que Ele partiu eu estou à espera de um cartão
postal qualquer, de um e-mail com fotos de algum ponto turístico europeu em
anexo, o que faria às vezes de um cartão postal, ou um telefonema em algum
horário incomum graças ao fuso horário. O cartão não veio e tenho certeza que
jamais virá, o e-mail talvez ainda venha, com poucas linhas, é claro, só pra
dizer que é tudo lindo e que Ele está adorando a viagem; só espero que não
tenha deixado o telefonema para esta noite, pois não suportei tantas alegrias
esfuziantes do outro lado da linha e desliguei depois de ouvir pela terceira
vez as mesmas frases em tons idênticos: “Feliz ano novo!”, “Aonde você tá?”,
“Com quem?”.
Não tive coragem de responder a última pergunta. Não
consegui dizer “estou sozinho”, de alguma forma transformar isto em palavras há
horas atrás seria um golpe pesado demais para suportar. Tentei me esquivar da
resposta com um “vou dormir, tô muito cansado” ou “acho que vou sair daqui a
pouco”.
Há dias me disseram que eu precisava parar de
conviver com ausências, mas não posso fugir. Meus fantasmas me acompanham aonde
eu vou. Eu trocaria sem pensar uma vez e meia todas as minhas solidões por
presenças, por sorrisos no plural no porta-retrato sobre a mesa onde escrevo,
por mais um par de pés na ponta da cama junto ao meu.
Esses dois últimos anos têm sido de perdas. A morte
me levou uma avó, dois tios, uma prima e dois grandes amigos. Infarto, câncer,
AVC, um namorado ciumento e criminoso e o maldito freio do carro que não
funcionou quando deveria, foram as razões que me deram. Foi frio demais,
cientifico demais pra mim. Perdi. Fui lesado. Foram tirados de mim e ponto.
Perdi dois empregos, um namoro bem começado, mas
inexplicavelmente mal vivido. E perdi Ele que foi para o outro lado do
Atlântico atendendo o chamado da sua vida, não me opus, preferi evitar qualquer
tipo de competição. Carreira, sonho e uma oportunidade única estavam a sua espera
lá, aqui estava eu que não ousei pedir que ficasse.
Seria ótimo se o mundo acabasse numa noite de
réveillon, 99% das pessoas morreriam felizes. Pensando bem é claro que isso
jamais aconteceria, o final da história não será tão perfeitinho assim. Talvez,
uma tarde de maio quando eu começasse a ter esperanças na minha própria vida ou
a manhã de um domingo de carnaval sejam mais apropriadas para se acabar com
tudo, com a nossa esperança no futuro, com a certeza invisível no amanhã.
Se eu acreditasse em magias, astrologias,
numerologias teria esperanças que esse ano será diferente. Segundo a numeróloga
um tanto obesa que estava num desses programas que passam à tarde na TV, este
será um ano de realizações, segundo ela de “colheita”. Será que eu plantei
algo? Quantas vezes será que ela repetiu essas mesmas palavras nos últimos fins
de ano? Pelo que me lembro, essa foi a última vez que dei uma bela gargalhada. Ri
ao imaginar as inúmeras pessoas que também estavam ouvindo aquilo e pior
estavam acreditando no que aquela senhora dizia.
São quase sete horas da manhã um senhor carregando
um saco preto nas costas prova que ainda há vida no planeta e atravessa a
avenida em direção ao viaduto, provavelmente é lá que ele vive, a cena me
desvia dos meus pensamentos um instante. Apenas observo. O dia já está mais
branco do que cinza. Tudo continua igual ao ano passado, ao retrasado, aos anos
da primeira década do século. Tenho medo só de pensar o que eu faria se assim como
as outras pessoas tivesse acreditado que seria tudo diferente com a chegada de
um novo ano e então percebesse que continua tudo exatamente igual, a exceção do
calendário que foi trocado por um novo em folha.
O que eu queria é uma vida nova a cada ano. Uma nova
chance para viver a minha história de maneiras diferentes e inexplicáveis a
cada primeiro de Janeiro. Assim como me desfaço do calendário antigo, seria
mais fácil me livrar do passado, do peso dos anos, dos fantasmas e decepções
que me acompanham a cada dia pouco importando o ano.
Hoje são me oferecidos mais trezentos e sessenta e
cinco dias para tentar sobreviver. Felizmente um dia a menos que o ano
terminado há poucas horas. Tento sorrir, mas não consigo. No entanto a falsa
ilusão de que pode ser tudo diferente a partir de hoje me tranquiliza. Nunca é,
e eu sei disso.
Continua tudo exatamente igual. Minhas incertezas
quanto ao amanhã. O medo de não chegar ao próximo aniversário, ou de não estar
mais aqui para abrir a porta quando Ele voltar. Se é que Ele me procurará caso
retorne um dia.
São quase oito horas da manhã e já vejo surgir aqueles
que voltam à normalidade do seu dia-a-dia: uma senhora de cabelos grisalhos que
volta da padaria com uma sacola azul, o homem que passeia com seus cachorros ou
o jovem casal de namorados que entram no prédio ambos vestindo branco e
visivelmente cansados. A normalidade da qual não me afastei nas últimas horas,
enfim começa lentamente tomar conta de todos.
Daqui a dois dias volto a trabalhar e o faço, pois
daqui a cinco dias as conta voltarão a aparecer. Pois a vida continua, para
contrariar aqueles que não acreditavam nisso. Exatamente igual, para
decepcionar aqueles que acreditaram que algo mudaria.
Cheguei até
aqui numa cidade que não é a minha, no primeiro dia, nas primeiras horas de um
ano que muitos anunciavam que jamais chegaria. Chegou. Chegamos. Contrariando
previsões, desafiando a certeza de muitos, cuspindo sapos e chutando pedras. Pois
não é fácil remar contra a maré, nem ser desafiado a sobreviver a cada novo dia.
Sobrevivi. Estou vivo. Vejo o amanhecer que alguns acreditaram que não iria
acontecer. Aconteceu. Chegou. Resistimos. Somos dois desacreditados, isso me
desperta certa simpatia. Vivo esta manhã.
Uma das poucas certezas que tenho: estar vivo,
continuar respirando e sentindo o coração pulsar. Apenas isso me dá um fio de
esperança de que estarei vivo amanhã, que sobreviverei até o próximo
aniversário e que estarei aqui até que Ele volte e bata à minha porta.
Abro a janela e coloco o rosto para fora. Não há sol,
mas uma claridade intensa. Ainda há o silêncio incomum para esta cidade, principalmente
neste horário. É primeiro de janeiro continuamos existindo e eu preciso dormir.
Mas antes, abro um novo documento na tela do computador. Minha história, este
ano, começa aqui entre a solidão e a folha em branco. Escrevo.